sábado, 17 de dezembro de 2011

QUANDO NÃO DIZER FAZ ADOECER

Quando vivenciamos uma perda ou uma frustração, há dois aspectos da questão que precisamos considerar. Um é ressignificar o acontecimento e transformar o fato negativo num impulso para realizar, aprender e retomar a vida, resgatando tudo o que pode ser recuperado.
O segundo aspecto é cuidar da ferida que o impacto produziu. Sim, porque os acontecimentos que geram abalos marcantes deixam uma ferida impressa na estrutura emocional profunda, e essa ferida precisa receber cuidados muito específicos.
Olhar positivamente o acontecimento frustrante é apenas um dos remédios, é o tratamento de emergência, a providência de “primeiros socorros”. Mas não é tudo. Qualquer pessoa que sofra um acidente comum não se sentirá atendida e segura apenas com os cuidados dos serviços de emergência, por mais eficientes que sejam. Outros passos precisam ser dados: pergunta-se ao paciente: onde dói, o que sente, como está; toca-se, investiga-se, examina-se, deixa-se em observação, cuida-se.
Com as questões emocionais não é diferente. Até porque a separação entre corpo e mente, razão e emoção, matéria e espírito são ilusórias. Somos uma unidade bio-psico-emocional-mental-espiritual-psicológica-afetiva e tudo influencia tudo. Quando, além dos traumas visíveis no corpo, estão presentes outros hematomas imponderáveis, presos às estruturas delicadas do sentimento, o cuidado é mais necessário ainda.
Conserta-se uma perna com fratura exposta colocando-se alguns pinos ou usando outros recursos da ortopedia. Mas a dor do tecido afetivo requer sutileza e atenção maiores e mais diligentes.
Não é uma boa fórmula para quem deseja superar um sofrimento, seja uma fratura, uma doença comum ou ou uma perda importante - que a pessoa se faça de “fortona”, e que coloque uma capa de “super” , dizendo para si ou para os outros: "tá tudo bem! É assim mesmo! Vamos partir pra outra! Não tem fratura, nem doeu! Eu tiro de letra!"
Na melhor das hipóteses, você até voltará a andar, mas o membro ficará deformado. E há ainda o risco de se formar um bolsão de pus, infeccionando todo o organismo. Sonhos e desejos podem morrer assim - envenenados pela infecção do silêncio.
Nosso grande engano é achar que é vergonhoso admitir a dor e a fragilidade. Aprendemos com nosso pais, desde muito cedo, que não podemos confiar naquilo que sentimos. Quem nunca viu uma criança chorando, após um tombo, com o lábio sangrando, um dente quebrado, ou o joelho escoriado, ser consolada por um adulto que diz rápida e convincentemente: “não doeu! Não chore! Não foi nada! Já passou, já passou!”. O que fica como verdade para a criança? O que ela sente, ou o que o adulto diz? Se a sua dor mais verdadeira é negada, é porque é vergonhoso ou feio sentir. Esta é uma conclusão lógica para o espírito infantil.
Não seria melhor providência dizer à criança: “eu sei que dói muito, mas eu vou cuidar disto, ou alguém vai cuidar! Você pode chorar! Eu estou aqui com você”!
Pois voltemos aos dois aspectos de que falamos no início. Ver o lado positivo da queda, não se atirar no chão só porque algo aconteceu que nos frustrou, ressignificar positivamente é uma fórmula providencial e necessária. Ela resulta de um exercício da mente, do raciocínio, do cálculo e da análise. A pessoa, usando recursos do intelecto, analisa e conclui: “bem, não foi tão ruim assim; poderia ter sido pior; com esse acontecimento eu amadureci, aprendi sobre meus sentimentos, testei minha resistência à frustração, desenvolvi resiliência, ganhei experiência.”
Tudo isto é verdade e há um momento em que tratar as situações graves com relativa frieza é muito importante. Às vezes constitui o único recurso para segurar o choque, superar a crise , recuperar a dignidade, sobretudo quando se trata de perder x ganhar. Mas há muito ainda o que fazer, sob pena da primeira fase perder sua eficácia e tornar-se um engodo.
A segunda etapa é aquela que se segue ao tratamento de emergência. É o espaço onde a criança precisa dizer o que dói, como está,o que sente; é quando ela precisa expressar seus sentimentos ditos negativos, como: raiva, decepção, mágoa, ódio, inveja, frustração, medo, desesperança, mau humor, azedume. Não há caminho mais competente para se liberar as seqüelas da alma e drenar o veneno que intoxica a energia vital. É como cortar a carne e esvaziar o tumor, purgando o pus que lateja, encoberto pelos tecidos do corpo; dói, mas dá um alívio! E a saúde vem!
Neste espaço, que deve ser seguro, imparcial e acolhedor, a “criança interna” que todos nós temos, ou a nossa “consciência infantil” precisa ter voz e esparramar-se, respirar a dor, revivê-la totalmente, não se envergonhar de sentir e expor. Só essa expressão genuína e verdadeira pode liberar o coração da pressão dos sentimentos encobertos pela nossa máscara do falso poder.
Necessário aprender que agora, como adultos, já não podemos aceitar a proibição de chorar; já é possível ser livre para acreditar na própria dor, confiar na boca que sangra, no joelho que queima, no dente pendurado! É muito saudável e curativo resgatar a nossa criança interna, tomá-la pela mão e dizer a ela: “ agora você pode chorar, sim! Tá doendo, sim! Não passa rápido, não!”
Os sentimentos negados são grandes causadores de doenças e nos incapacitam, inibindo a criatividade e obstruindo nossos impulsos construtivos. De tanto negá-los passamos a acreditar, com o passar do tempo, que a situação foi superada e tocamos a vida. Mas, como eles não foram aceitos, como foram negados e reprimidos , afastam-se de mansinho; mas continuam atuando, escondidos nos subterrâneos de nossa história. De lá eles pressionam para cima, nos comandando a vontade e contaminando nossa vida.
Quando surgem as depressões, insônias, alergias, ansiedades, furúnculos, doenças sem diagnóstico, queda de cabelo, baixa resistência imunológica, fibromialgias, inibições sexuais, ficamos a perguntar: COMO ISTO FOI ACONTECER?
(Ray do Vale)
BLOG: www.ray-vale.blogspot.com
Email: ray.vale@hotmail.com


Um comentário:

  1. Hoje vivi uma experiência que confirma o que está escrito no texto acima. Minha filha e genro tinham acabado de sair para uma viagem de trabalho. Fiquei com meu neto de três anos, observando o que se passava com ele. É sempre difícil pra ele separar-se dos pais, que são profundamente amorosos e presentes com os filhos. Ele se fez de forte, beijou a mãe e o pai, ficou aparentemente bem, preparado que fora para isto.
    Depois que eles saíram, sentou-se na cama dos pais, baixou a cabeça, olhando - sem olhar - seus dois bonecos, um em cada mão. Percebi que fazia um grande esforço pra não chorar, pra ser um “bom menino”. Seu rosto ficou vermelho. Subitamente duas lágrimas pularam dos seus olhinhos ajaponesados. Contraiu os lábios, fazendo “beicinho” e começou a soluçar abafado. Senti o quanto era difícil para aquela criança aquele momento.
    Então cheguei mais perto, olhei-o e disse: “tá com muuuuuiiiita saudade da mamãe e do papai, né?”... Ele confirmou com a cabeça. “Eu sei que você ficou triste porque vai ficar três dias longe deles...” Sim, disse ele com novo movimento de cabeça. “Se você quiser chorar, a vovó vai ficar aqui perto de você até você chorar tudo, tá?” De novo ele confirmou. “Você pode chorar porque a saudade sai pelos olhos!” Continuou fazendo movimentos, visivelmente aliviado e já com o rosto descontraído. O acolhimento incondicional do que ele sentia já havia feito o seu efeito. Minutos depois estava bem, sorridente e brincalhão. E continua bem, expressando a alegria espontânea da sua idade.

    ResponderExcluir