domingo, 24 de fevereiro de 2013

A CHUVA DE BELÉM

Ser recebido pela chuva de Belém tem algo de rito e de sagrado,
Um batismo com água, daquela que vem direto da mão de Deus.
Ela abençoa tua cabeça e recebe teus pés, estendendo um tapete fluido,
úmido como um útero, que enraíza o corpo ao chão generoso da tua humanidade terrena.
Mas também te banha com cristais que vem do céu,
trazendo notícia dos anjos, dos deuses - dos de lá e dos que estão em ti.
Cristal, Cristo, banho de bênçãos!
(Ray do Vale- pra celebrar fim de tarde de Domingo)
PAIS ENVELHECEM. FILHOS TAMBÉM.

Poucos filhos aceitam o envelhecimento dos seus pais. E eles manifestam o desagrado de diversas formas, nem sempre muito gentis. Fique diante da porta de um banco, no dia do pagamento dos aposentados e você terá uma boa amostragem desse quadro. Vá a um consultório de idosos e, com alguma perspicácia, perceberá um panorama dessa relação, bem diversificado e nem sempre agradável de se ver.

Há aqueles que, espontaneamente manifestam, um cuidado real, tolerante, que exala gentileza. Mas um grande número , mesmo colocando a máscara do bons filhos, não conseguem esconder a impaciência quando rugem entre dentes: “mãaaaeee, faça iiiiiiisto!”, Paaaaaii, não faça aquiiiiilo!” “Me dê o cartãaaoo!” “Pise direeeitoo!” “Mãaaae, a moça tá falando com a senhoooora!” “Preste atençãaaoo!”

É certo que o bom filho é bom filho qualquer que seja a circunstância. E que as almas generosas e bem formadas honram seus pais em qualquer idade. E o fazem porque tem esse traço gentil impresso no eu profundo; eles respeitam qualquer pessoa, idosa ou não. São os homens e mulheres de bem.

Entretanto, mesmo para estes, fica alguma perplexidade quando um dia descobrem que seus pais já não são mais o que foram.. Para a consciência infantil, contraparte da consciência adulta de todos nós, não é fácil conceber que aquela mãe forte, que sustentava seu braço indefeso ao atravessar a rua, já não consiga, ela mesma, ter reflexos para atravessar sozinha, sem se atrapalhar.

A criança egoísta presente no interior de cada um, não quer aceitar que esteja surdo aquele ouvido atento a qualquer tossezinha, que acordava ao menor mugido, para oferecer o seio, adivinhando se as fraldas estavam levemente úmidas.

E o pai, cujos olhos viam de longe todos os perigos? Como imaginar esses olhos agora cinzentos, quase foscos, incapazes de ler seu próprio documento de identidade? Ele, que criava brinquedos, reais ou imaginários, viajando sem limites pelo mundo da fantasia, agora tem as mãos trêmulas e não consegue abotoar a própria camisa.

Difícil ver sumindo a memória viva , naquela mãe que tinha resposta para todas as perguntas. Ela que ajudava nas lições da escola e ensinava caminhos para a vida, hoje derrama o alimento sobre o peito, errando o caminho para a própria boca. Ou a avó, que recriava mil vezes as mesmas historinhas coloridas e sempre novas e que hoje esquece tudo e repete sempre o mesmo relato sem graça.
Difícil ver curvado o homem, ou a mulher, firmes, donos da verdade, que davam ordens, sabiam, comandavam, exigiam, davam todas as cartas e que hoje se calam, para evitar conflitos, diante da suposta autoridade e do suposto saber dos meninos que criaram.
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Os filhos reagem de formas diferentes a essa transição dos pais da adultez cheia de vigor para as etapas progressivas da velhice frágil. E a maneira como a pessoa se porta neste passo é bem um reflexo de como ela se coloca diante da vida em geral, diante de si mesma, sobretudo de como encara a realidade do seu próprio envelhecimento. Os que detestam - porque temem - a idéia de não serem jovens para sempre, via de regra lidam muito mal com pessoas idosas, sejam elas pais, avós ou gente comum. Alguns chegam ao extremo de evitar o contato.

As pessoas relativamente bem integradas, mesmo acalentando o medo infantil de ver secar a fonte de onde receberam a vida, elaboram seus temores e se adaptam a essa realidade. Acomodam-se, mesmo com pesar, ao que é. E amam seus pais com aquele amor real, sem exigências; aceitam a vida que receberam como um dom e não julgam nem exigem. Dedicam um afeto cuidadoso e complacente. Nãonão se incomodam de andar devagarzinho, dar boas risadas de algum tropeço, ou oferecer o braço quando solicitados; intuem quando devem estar presentes e quando é bom que se afastem um pouquinho.

Infelizmente há os que agridem de diversas formas, desrespeitam e invadem. E não estou falando dos atos ostensivos e grosseiros, das feridas que todos podem ver. Estas existem também e em grande conta. Falo aqui de outras agressões mais sutis: quem já não viu um filho, que de forma aparentemente natural, trata seus pais como incapazes, criticando-os, desqualificando suas opiniões, ou ditando o que devem ou não fazer? Ou que se adiantam em ações que estes são capazes de realizar de forma competente? Que escolhem, autoritários, como a casa dos pais deve ser arrumada ou organizada? Ou decidem, sem consultá-los, onde eles devem morar, o que lhes convém, o que devem comprar, que programa de lazer é o melhor? E fazem isto por amor...
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Nenhum comportamento humano pode ser explicado de forma simplista, numa única linha de causa e efeito. As motivações para que filhos maltratem, humilhem e até abandonem seus pais tem origens diversas e profundas. Há filhos que foram maltratados, abusados e que viveram experiências de muito sofrimento. São situações que requerem uma análise mais técnica do ponto de vista psicológico. Não é esta análise que faremos agora.

Focaremos em aspectos mais prosaicos. E há um motivo, muito mais comum do que se pensa, para as relações disfuncionais entre filhos e pais idosos: o medo da velhice. Há os que não só temem como odeiam considerar o envelhecimento; não são capazes de olhar para essa fase da vida; evitam, fingem que ela não existe; refugiam-se na fantasia de que viverão eternamente jovens, rijos e belos...

Ouvi há algum tempo uma entrevista com a atriz Pepita Rodrigues que dizia, sem disfarçar a revolta: “a velhice é a coisa mais injusta, mais odiosa que existe. Deus errou! Deus não podia ter feito dessa forma!” E há o caso, amplamente comentado de um programa dito de humor que abordou a veneranda atriz Laura Cardoso chamando-a, de forma agressiva e tosca de “maracujá de gaveta”.

As pessoas que lidam de forma tão aversiva com o passar dos anos, que não aceitam o virar das páginas de sua própria história, de modo geral tem muita dificuldade para lidar com o livro alheio.
São pessoas que não dispõem de recursos internos para admitir e lidar com os sentimentos imaturos. Se o fizessem poderiam ultrapassá-los. Permanecem, assim, infelizes e inadaptados ao fluir natural da existência. Como mecanismo de defesa, projetam sobre seus pais toda a amargura encoberta. Esses pais expõem a velhice que querem negar; eles são seus espelhos, e pagam pela exposição involuntária de uma tela viva que diz: “veja você amanhã!”.

Reagem a esse espelho com frases do tipo: “Puxa, mãe! Eu já repeti isto três vezes!” “Tu tá surda? Não vou repetir mais! ” “Falei isto não faz dois dias! Tu não lembras? Não acredito!” “ Presta atenção pra atravessar a rua , mãe! Tu ainda vais ser atropelada!” “Olha ele repetindo a mesma história pela sétima vez! Hahahahaha! “ .

“Tu vais comprar isto pra que?” (o dinheiro é dos pais); “Gastando dinheiro com bobagem!” (os pais pagam a conta); que roteiro mais sem graça que tu escolheste para essa viagem!” (os pais pagaram o pacote!); “cortina horrível a que escolheste pra tua sala!”; e assim vai...
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O sábio senso comum sempre afirmou: quer saber como será sua mulher mais tarde? Olhe para mãe dela. Quer conhecer o seu marido no futuro? Olhe o pai dele!

Imaginem aquela mulher barriga de tábua, dieta de 500 calorias, coxa de passista da Portela (ou que se vê assim), cabelos de propaganda de shampoo, olhar para a mãe gordinha, enrugada, pele flácida, manchas senis na pele”, chinelinho “usaflex”, e que já não consegue empunhar o batom, nem a caneta, com a mesma destreza de antes... (argh!) “eu amanhã? Para o rapaz sarado, também não é agradável ver o pai, antes o herói viril e imbatível, com a barriguinha caída, unhas calcificadas, orelha peluda e aquela protuberância volumosa, pendente entre as pernas.

Esses jovens filhos, de tão distraídos com o espelho das academias, não percebem que trilham o mesmo caminho rumo à madureza. E que seus pequenos filhos são ou serão observadores atentos desse caminhar. Pais são modelos. O padrão da relação com nossos pais sempre representará aprendizado para os nossos filhos. Eles tenderão a recriar o que aprenderam sobre como tratar pai e mãe.

Cada um de nós envelhece um dia a cada dia, desde que fomos gerados. Essa marcha é inexorável. Aceitar que é assim traz saúde, alegria e realização. Em qualquer idade.

“São só dois lados da mesma viagem.
O trem que chega é o mesmo trem da partida...
A plataforma dessa estação é a vida...”
(Milton Nascimento)
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Ray do Vale - Psicóloga.
FEV/2013
Belém-Pará-Brasil
Email: ray.vale@hotmail.com
BLOG: ray-vale.blogspot.com

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

CHOVE, CHUVA !


Enquanto o sol não volta,
Reina, soberana, a chuva,
generosa e farta.
Acabou o Carnaval.
Ela chega e vai fazendo o seu trabalho.
Não espera, nem obedece.
Dá as ordens. E a ordem.
Limpa, varre, derrama cheiros, recolhe, fertiliza.
Fecunda de limpeza as calçadas que, de tão órfãs,
Não esperavam tamanho agrado.
Ruas e vias deitam-se preguiçosas,
esperando o banho.
Folhas caem como mangas maduras,
E nadam, bêbedas de riso,
feito criança de antigamente,
em lúdicas braçadas.
E alegre, a foliã corre, cantando,
Na quieta manhã cinza e dolente,
Salta, astuta e esconde nos buracos
O rescaldo da sujeira, a lixarada.
Quem quiser, limpe depois!
A sala tá arrumada!


Ray do Vale
Belém-Pa
FEV/2013


domingo, 10 de fevereiro de 2013

MURO

Quando olho a paisagem do mundo,

vejo homens e mulheres caminhando separados,

quais crianças perdidas, disfarçadas de adultos.

Um quer ao outro,

Mas guerreiam na escuridão, sob o comando de vozes antigas -

de gargantas que vomitam pesadelos,

nascidos de que porões ?

Herança cega de remotas imagens.

Imagens de massa, herança sem origem.

Sentimentos emprestados, lealdades a quem antes guerreou.

As mãos que anseiam por unir-se, seguram punhais alheios.

Das bocas ávidas por beijos e afagos,

brotam as duras estocadas do verbo envenenado

Carpindo ódios do passado.

Eu vi homens e mulheres - nem tão diferentes –

chorando sobre travesseiros ensopados de medo.

Medo de chorar no colo da leveza;

depor as armas - e perder o poder...

Que poder?


RAY DO VALE -
Psicóloga Clínica
Belém-Pa

sábado, 9 de fevereiro de 2013

MENINOS ADULTOS


Há uma demanda crescente de jovens que são levados por seus pais aos consultórios de psicólogos e médicos. Muitos desses meninos e meninas, pressionados precocemente para a escolha da carreira a seguir, estão acuados pelo stress, sentem medo e amargam um pesado sentimento de inadequação, fobias, pressões emocionais e patologias diversas, causadoras de grande sofrimento, físico e psicológico.

São quase crianças, tendo que assumir posturas adultas e pensar como gente grande. Aos quatorze, dezesseis, dezessete anos já precisam saber se querem ser médicos, juízes, astronautas, desembargadores, reis ou presidentes de multinacionais; são chamados a decidir se o melhor é estudar mecatrônica (o que será isto?), passar na seleção para o ITA, ou ser apresentadores do Jornal Nacional.

E há aqueles que são marcados pelos cursinhos para se tornarem SUPER, os que vão compor a “Turma Especial” - onde só sentam os melhores, os que seguramente vão aparecer no jornal e no outdoor como os primeiros, quando sair o resultado do Vestibular. Esses renderão dividendos à indústria dos melhores cursinhos da Cidade.

Cineminha, sorvete, futebol, tarde de domingo no shopping, casa de amigo, ou dar uma namoradinha, nem pensar! Os que ousam transgredir sucumbem acossados pela culpa e pelo medo dos concorrentes "que a esta hora estão estudando". Eles perderam o direito de viver a mais bonita fase de suas vidas. Já estão vivendo o futuro, compromissados com a profissão que nem sabem se desejam; não podem experienciar o presente, do qual tiveram que abrir mão. Já pensam onde vão fazer o Mestrado, o Doutorado, o pós e o pós,pós, pós... Se moram no interior vão para a capital, se estão na capital, vão para outra capital maior, se estão na capital maior, vão para o exterior.

Em tempos nem tão distantes, os adultos perguntavam às crianças: “o que você quer ser quando crescer?”. Hoje não há tempo para crescer. Nem para perguntar.

Esses meninos adultos vivenciam um paradoxo: até aqui eles foram poupados de assumir responsabilidades, receberam tudo na mão, não foram ensinados que existe a lei do dar x receber. Nunca precisaram lavar o copo no qual beberam água e pouco aprenderam sobre o significado do “se virar”. Pois bem: esses mesmos, de uma hora para outra, começam ser cobrados e exigidos pela família e pelo meio onde vivem, reféns da cultura do “você tem que vencer, tem que ser o melhor”. Como conciliar duas experiências tão contraditórias sem se perder?

E eles se perdem. Perdem-se em meio a tantas exigências para as quais não foram preparados. E adoecem , e deprimem. Estavam acostumados à calorosa proteção das fraldas. Não haviam aprendido que a vitória requer luta e que às vezes faz bem lavar a própria calcinha/cueca, arrumar a cama onde se dorme ou fazer o próprio sanduiche. São fruto de uma geração de pais que agem dando aos filhos muitos direitos, mas pouco ensinam sobre a outra face da vida - compartilhar deveres.
Com as novas e pesadas responsabilidades, eles estão perplexos, suando frio, vomitando silêncios, amargando gastrites, síndromes de pânico, sentimentos de culpa (meus pais não me cobram, mas sei que o maior sonho deles é que eu passe!). Estão tristes, com a autoestima em decadência, até porque ficaram mais redondinhos e pesados. Perderam o direito de definir os músculos na Academia.

Os pais também estão com gastrite erosiva, corrosiva, implosiva (existe?) e também vomitam: às vezes bílis, medos, inseguranças sobre seu papel de bons pais; mas também vomitam, sem querer, impropérios, alguns explícitos, outros amorosos e velados. Sofrem tanto quanto seus filhos, porque querem ser pais perfeitos de filhos igualmente perfeitos. E, como os filhos, sentem medo e culpa. E ainda precisam fingir que, se o filho não passar, será a coisa mais natural do mundo! Os filhos sabem que não é assim!

Este é um fenômeno da nossa época. Não estamos desqualificando a necessidade do estudo, o compromisso com uma carreira, a responsabilidade diante da vida e de suas demandas. Uma boa formação moral, espiritual e intelectual é o que de melhor podemos legar aos nossos filhos. Também não desejamos enveredar pelo caminho do julgamento maniqueísta rotulando o que ocorre hoje como bom ou mau, aceitável ou condenável. São os tempos novos, com suas dores e com seus dons.

Aos pais cabe procurar caminhos de ajuda que os preparem para uma relação melhor com seus filhos. Necessitam cuidar-se primeiro, dialogar com sua própria história, encarar suas obstruções e crenças, admitir seus próprios limites. Como no avião, precisam colocar a máscara sobre o próprio rosto para depois socorrer as crianças.

Quando conseguirem respirar e reconhecer sua vulnerabilidade, admitindo para si mesmos que o medo dos seus filhos é o seu próprio medo, poderão apropriar-se de sua força e de seu poder de pais e apoiadores.

Convém lembrar que, nas relações em geral e em especial no trato com os filhos, os adultos - pais, mães, avós, professores, ativam dentro de si um adolescente/ criança arcaicos que às vezes reage, ao invés de agir.
A essa parte encoberta em nossos subterrâneos chamamos de “consciência infantil” ou “criança interna”. Ela é o resultado das experiências infantis com nossos próprios pais e com a vida em geral. Isto vale para todos, sem exceção. Muitas vezes, mesmo quando somos adultos saudáveis e bem integrados, é a partir desse espaço emocional que vivemos grande parte das interações com nossos filhos. Muitas vezes pais e mães revelam-se meninos cuidando de meninos, ou brigando com meninos.

É essa consciência infantil que quer o sucesso dos filhos hoje, já, agora e não amanhã; que secretamente deseja que o filho seja melhor que o primo; é essa criança encoberta que finge não estar nem aí se o filho não passar, mas que morre de vergonha de amigos e parentes se ele não passa de primeira (às vezes ele não passa de primeira, nem de segunda, nem de quinta... e aí? ); é esse aspecto regredido que induz sutilmente a escolha da carreira dos filhos (você pode escolher o que quiser, mas ... medicina... ah! medicina!...).

A boa notícia é que a maioria dos pais e mães tem também dentro de si, ao lado da criança imatura, um adulto sensato e maduro. É preciso reconhecer essa dualidade, identificar o adulto, mas não ignorar a ação da criança e o espaço que ela ocupa; dar a ela o colo mas também o limite. Se a criança interna é reconhecida e aceita, o adulto-pai-mãe pode ocupar o lugar de honra. Dele poderá fluir para seus filhos amor, autoridade, apoio, suporte, presença.

Desse ponto será possível encarar o desafio de assistir ao voo dessas aves quase implumes, que fazem sua primeira grande travessia. Esse voo não precisa ser tão urgente, nem tão tenso; pode, e deve, ser relaxado e bom. É possível, sim, responder com responsabilidade e compromisso, mas com fluidez , às demandas de cada época e de cada idade.
Esses meninos e meninas, quase crianças, assustados, invadidos às vezes, tem direito a construir uma consciência mais clara a respeito de seus próprios desejos e sonhos – REAIS!

( Ray do Vale – Psicóloga Clínica)